Me dê sua atenção, te chamo no latido de minha surdez, um desafinado som porque nem sequer me escuto mais. Quero o biscoito, a comida saída da latinha baixinha, sabe? Lembrou? esse é o carinho quentinho na minha alma. Acho que me lembro da infância na nossa casa de dois andares. Lá era comida de verdade.
Vamos pra fisioterapia hoje? ah, não! tá frio e a cama boa. Ta bom... você coloca a comida da latinha aí acho que acordo de vez e vamos. Ah, é aquele carinha do taxidog? saco! vou ficar com medo de novo, sorte que na fisiovet tem a minha outra caminha.
Me chamam de turrona, rabugenta nem se lembram que cresci junto e cuidei de dois garotos durante meus dezessete anos, subi e desci muita escada para saber se estavam bem e em casa, isto me valeu longos dias entrevada sem poder andar com dores, sem reclamar.
Que fiz duas grandes cirurgias, daquelas de mulher nenhuma passar sem depressão, aguentei os curativos, a roupa justa e o cone de proteção e nem por isto chorei à noite, mordi meus enfermeiros de casa nem do hospital, sempre fui dócil. Mordi canelas, sim. Quem não faria? aquele pedreiro estava pulando a janela de casa e o síndico apareceu do nada na escada pareciam suspeitos. Agressão somente em defesa dos humanos que moram comigo, estes defendo, defendo sim e cuido e cuidei por dezessete anos.
Abanei muito o rabo e fiz festinha nas chegadas destes humanos. Ah...quando bebê ainda, tinha a urina fácil quando me emocionava com estas chegadas e também por medo. Medo de descer para andar na portaria (para quê precisavam me levar? era tudo tão fora do controle! era tudo tão maior do que eu!).
Tento me defender da visão que me falta, da surdez que me torna frágil, das pernas que não ajudam mais.Nem agrido ninguém, nem mesmo latir. O latido só é pra dizer que preciso de ajuda. Que não consigo andar, que estou com fome, que não sei onde está minha comida...só pra você não se esquecer...hoje sou eu a frágil.
Sabia há pouco tempo reconhecer o vulto daquela humana trazendo o biscoito, a vasilha com água fresca. Hoje me guio apenas pela luz e o branco das paredes. Nem sei como era enxergar antes, então isto é estar viva e dizer me cuide, me dê seu minuto mas me dê só quando eu preciso me sentir segura, chegar sem avisar me assusta, levantar a mão pode ser que vai alcançar e ferir meus olhos ou machucar meu focinho. Meu espaço, só percebo estar mantido se chegar de mansinho, me tocar onde não sinto a dor da idade, que até nem me queixo nós duas temos um acordo de respeito... E assim continuo, cochilando, me virando e vivendo com você na nossa história para jamais nos esquecermos de como podemos ser felizes sem invasão e com respeito.
Sou uma anciã jovem amando os passos por onde ainda posso ir, com a presença de outros passos conhecidos, à frente, a me guiarem.
Apenas me ame à distância e hora certa do respeito pela minha idade.
Não sou rabugenta, sou Penélope ainda ˜a charmosa˜, apenas uma idosa na nossa família.
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